Desenvolvimento de quem? Artigo de Jaime Brasil na Folha de Boa Vista

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JAIME BRASIL: Desenvolvimento de quem?

Data: 03/11/2012

Jaime Brasil Filho *

Roraima deve a sua existência a duas coisas: ao Rio Branco e ao capim do Lavrado. Deve ter sido uma grande visão para o primeiro não índio quando, saindo das águas escuras do Rio Negro, adentrando o seu maior tributário à margem esquerda, remando e “varejando” contra a correnteza, deparou-se com uma região descampada,

 sem grandes árvores, e com uma “grama” natural que se estendia até o horizonte. Imagino como foi subir as corredeiras do Bem-Querer, sem nenhuma ajuda de motores e, ultrapassando a foz do rio Mucajaí, de repente, ver surgir um mar de capim.

O Rio Branco foi a primeira e, durante mais de um século, a única “estrada” que nos ligava ao restante do país. Era o Rio Branco caminho e morada, sim, o leito onde todo o vale se recosta e desliza em seus lençóis. Lugar onde a terra abraça definitivamente a água. Um grande vale formado pelos rios Uraricoera e Itacutu que a oeste/noroeste e leste/nordeste escoavam, como de fato escoam, todas as chuvas e águas das nascentes que regam o maciço das Guianas, que descem das serras e desenham os contornos do berço de Macunaíma, criador mítico de cada pedra que nos observa e de cada bicho que por aqui caminha e respira.

O Lavrado, filho dos sedimentos trazidos pelas veias do Rio Branco, era a única possibilidade de Manaus consumir proteína vermelha; além de porcos criados nos quintais e o peixe-boi, a antiga capital da província não tinha alternativas. Viu-se, então, nos campos naturais do vale do Rio branco a oportunidade de criar gado e, assim, abastecer Manaus em um tempo em que não havia grandes tratores que desmatassem as florestas e as substituíssem por capim e tampouco havia um transporte de carga ágil e seguro que garantisse o seu abastecimento pelos grandes centros de produção de carne do sul do Brasil. Sendo assim, Roraima enchia os batelões com os bois criados no Lavrado e, Rio Branco abaixo, eles eram levados até Manaus.

Grosso modo, foi por isso que Roraima deixou de ser um pedaço do Amazonas, por que foi possível, graças ao Rio Branco e ao Lavrado, que se desenvolvesse uma matriz econômica própria, diferente de todas as outras da região amazônica.

Depois veio o ciclo do diamante, com o Tepequém protagonizando esse período de consolidação de uma economia que, apesar de pequena, era autônoma e que redundou na criação do Território Federal do Rio Branco, nome mais do que apropriado, eis que a nossa terra não é mais que o grande vale do Rio Branco.

É justamente esse vale que alguns políticos querem matar, é justamente a nossa terra que eles querem destruir. Com o velho discurso desenvolvimentista que até agora só desenvolveu a corrupção, a bandalheira, os “15%” ou “30%” nas licitações, a falência do Estado, esses políticos e administradores públicos sustentam o discurso da destruição da nossa única artéria hídrica, defendem o aleijamento eterno da vida aquática e terrestre no vale do Rio Branco, sem contar os efeitos na vegetação e clima, tudo recaindo nas vidas de todos nós, na nossa saúde e bem-estar.

Esses políticos e agentes do Estado omissos atacam a terra, o ar e a água, agridem a história imemorial e recente, social e econômica de Roraima. Para começar, permitiram que esse lixo chamado acácia mangium empesteasse os campos gerais do Lavrado com sua inutilidade plena, se bem que agora a estão usando em fornos de olarias, boa parte destas também ilegais, fixadas nas matas ciliares do Rio Branco. Muitos desses políticos, dizia eu, queriam, e chegaram mesmo a aprovar em lei que nós pagássemos a metade da conta de luz de uma tal de Brancocel, uma usina de celulose que jamais saiu do papel, papel este que seria produzido com essas mesmas acácias que agora morrem de fungos e de fogo quando agrupadas no Lavrado, mas que se disseminam aleatoriamente e sem controle em várias áreas, principalmente nas margens de estradas e igarapés.

São praticamente esses mesmos políticos e tecnocratas que bancam atualmente a instalação de uma usina de produção de etanol que seria localizada justamente na base da formação do Rio Branco, ao lado da sede da antiga fazenda São Marcos, hoje terra indígena, no encontro do Uraricoera e o Itacutu. O EIA-RIMA desse empreendimento, que eu já tive a oportunidade de estudar, é um poço de mentiras e imprecisões, mesmo assim, com apoio governamental estadual a fedentina promete acontecer. Isto por que a chaminé da fábrica, segundo o próprio EIA-RIMA, lançará fumaça que poderá chegar até Boa Vista, atingindo principalmente os bairros de Aparecida, Bairro dos Estados, Caçari e Paraviana. Sem falar no perigo de contaminação da água por vinhoto. E por aí vai.

A sanha das empreiteiras e seus comensais se traduz no que seria a derradeira e definitiva ameaça à vida saudável nas terras do vale do Rio Branco, refiro-me à declarada intenção de criar um coágulo permanente no meio da artéria, a tal hidrelétrica do Bem-Querer. Tal obstáculo no meio do caminho, do fluxo da vida, impedirá a migração dos peixes, alagará imensas áreas de florestas e lavrados, alterará o clima. E tudo isso para quê? Para que meia dúzia de pessoas ganhe dinheiro.

Por acaso há escassez de energia em Roraima? E os contratos milionários com a Venezuela e com empresas brasileiras que têm parques termoelétricos aqui? O que é feito com a nossa energia? Por que pagamos um valor tão alto por uma energia que nos chega do exterior a um preço tão barato? Se o regime de chuvas de Roraima é o mesmo que abastece a represa de Guri, na Venezuela, para que serviria criar uma hidrelétrica que pode padecer dos mesmos problemas climáticos? Por que não exploram todo o potencial da hidrelétrica de Jatapu? Por que não insistir na ligação com o sistema Tucuruí, este sim, pertencente a uma outra região climática. E a energia solar, eólica, de biomassa, todas as fontes tão abundantes por aqui, por que não investir nisso? E podemos ventilar muito mais argumentos para provar o péssimo custo/benefício que a hidrelétrica de Bem-Querer traria, e que também apontam que por trás dos argumentos desenvolvimentistas está o desejo de alguns em se apropriar de recursos públicos destruindo o patrimônio natural que deve servir ao povo.

Roraima não se desenvolve não é por falta de energia, é por falta de vergonha na cara de muitos dirigentes e por causa da impunidade que enche a Penitenciária Agrícola de pobres, enquanto os ladrões do dinheiro público desfilam pelas ruas sempre defendendo o “desenvolvimento”.

Desenvolvimento de quem?

Como disse um amigo: “só quer a hidrelétrica do Bem-Querer quem tem ‘mal-querer’”.

* Defensor Público

Hidrelétrica de Bem-Querer: Movimentos querem audiência pública

do Jornal Folha de Boa Vista, 14/11/2012. http://www.folhabv.com.br/Noticia_Impressa.php?id=140083

AMILCAR JÚNIOR

Representantes de movimentos sociais e membros do poder público reuniram-se, ontem à tarde, na Federação do Comércio de Roraima (Fecor/RR), para discutir a polêmica que envolve a possível construção de uma hidrelétrica nas corredeiras do Bem-Querer, no rio Branco, localizada no Município de Caracaraí, a mais de 150 quilômetros da Capital.

A advogada Ana Paula Souto Maior, do Instituto Socioambiental (ISA), adiantou à Folha que durante a reunião os representantes iriam propor ao Conselho Estadual das Cidades, presidido por Eugênia Glaucy, audiências públicas em Boa Vista, Iracema, Mucajaí e Caracaraí. A proposta é tratar da alteração feita na Constituição Estadual em que, na surdina, os deputados da base governista retiraram o tombamento das corredeiras e da faixa de 500 metros das margens do rio Branco.

“Esses bens anteriormente eram protegidos pelo artigo 159 da nossa Constituição, mas os deputados alteraram a lei após aprovarem a Emenda Constitucional número 03, de 23 de outubro de 2012. Solicitamos que a Assembleia reverta sua decisão de retirar a proteção de um patrimônio cultural, histórico, ambiental e arqueológico até que a sociedade roraimense seja ouvida”, disse a advogada.

Entre as entidades que encabeçam o movimento estão a Purakê, Colônia de Pescadores, Central dos Assentados, Diocese de Roraima, Movimento Nós Existimos, Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Hutukara Associação Yanomami, Instituto Sócio Ambiental (ISA), Fórum da Juventude, entre outros.

A presidente do Conselho das Cidades em Roraima, Eugênia Glaucy, disse que a entidade estará aberta a negociações para discutir em audiências públicas uma política de interesse coletivo, “acima de tudo”, sem posicionamento político do Estado, uma vez que, segundo ela, a construção da hidrelétrica foi uma proposta do Governo Federal.

“Sobre a alteração feita na referida lei, não podemos nos contrapor à decisão do Poder Legislativo, pois os deputados devem ter encontrado razões para a mudança. E a sociedade é quem pode avaliar a decisão. Como já dissemos, o Conselho estará aberto à discussão sobre o assunto”, afirmou.

A carta entregue aos conselheiros na audiência pede a preservação das corredeiras, impedindo a sua destruição ou descaracterização. De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o sítio arqueológico do Bem-Querer foi descrito pela primeira vez em 1985. Há ainda a Lei federal número 3.924/61 que dá proteção aos sítios arqueológicos nacionais.

Ao final da reunião, por unanimidade, os representantes dos movimentos sociais decidiram cobrar do Conselho a convocação de audiência pública a ser realizada na Assembleia Legislativa, com a finalidade de se aprofundar os debates sobre o assunto. Eugênia se comprometeu a viabilizar a audiência junto aos deputados.