Desenvolvimento de quem? Artigo de Jaime Brasil na Folha de Boa Vista

http://www.folhabv.com.br/Noticia_Impressa.php?id=139303

JAIME BRASIL: Desenvolvimento de quem?

Data: 03/11/2012

Jaime Brasil Filho *

Roraima deve a sua existência a duas coisas: ao Rio Branco e ao capim do Lavrado. Deve ter sido uma grande visão para o primeiro não índio quando, saindo das águas escuras do Rio Negro, adentrando o seu maior tributário à margem esquerda, remando e “varejando” contra a correnteza, deparou-se com uma região descampada,

 sem grandes árvores, e com uma “grama” natural que se estendia até o horizonte. Imagino como foi subir as corredeiras do Bem-Querer, sem nenhuma ajuda de motores e, ultrapassando a foz do rio Mucajaí, de repente, ver surgir um mar de capim.

O Rio Branco foi a primeira e, durante mais de um século, a única “estrada” que nos ligava ao restante do país. Era o Rio Branco caminho e morada, sim, o leito onde todo o vale se recosta e desliza em seus lençóis. Lugar onde a terra abraça definitivamente a água. Um grande vale formado pelos rios Uraricoera e Itacutu que a oeste/noroeste e leste/nordeste escoavam, como de fato escoam, todas as chuvas e águas das nascentes que regam o maciço das Guianas, que descem das serras e desenham os contornos do berço de Macunaíma, criador mítico de cada pedra que nos observa e de cada bicho que por aqui caminha e respira.

O Lavrado, filho dos sedimentos trazidos pelas veias do Rio Branco, era a única possibilidade de Manaus consumir proteína vermelha; além de porcos criados nos quintais e o peixe-boi, a antiga capital da província não tinha alternativas. Viu-se, então, nos campos naturais do vale do Rio branco a oportunidade de criar gado e, assim, abastecer Manaus em um tempo em que não havia grandes tratores que desmatassem as florestas e as substituíssem por capim e tampouco havia um transporte de carga ágil e seguro que garantisse o seu abastecimento pelos grandes centros de produção de carne do sul do Brasil. Sendo assim, Roraima enchia os batelões com os bois criados no Lavrado e, Rio Branco abaixo, eles eram levados até Manaus.

Grosso modo, foi por isso que Roraima deixou de ser um pedaço do Amazonas, por que foi possível, graças ao Rio Branco e ao Lavrado, que se desenvolvesse uma matriz econômica própria, diferente de todas as outras da região amazônica.

Depois veio o ciclo do diamante, com o Tepequém protagonizando esse período de consolidação de uma economia que, apesar de pequena, era autônoma e que redundou na criação do Território Federal do Rio Branco, nome mais do que apropriado, eis que a nossa terra não é mais que o grande vale do Rio Branco.

É justamente esse vale que alguns políticos querem matar, é justamente a nossa terra que eles querem destruir. Com o velho discurso desenvolvimentista que até agora só desenvolveu a corrupção, a bandalheira, os “15%” ou “30%” nas licitações, a falência do Estado, esses políticos e administradores públicos sustentam o discurso da destruição da nossa única artéria hídrica, defendem o aleijamento eterno da vida aquática e terrestre no vale do Rio Branco, sem contar os efeitos na vegetação e clima, tudo recaindo nas vidas de todos nós, na nossa saúde e bem-estar.

Esses políticos e agentes do Estado omissos atacam a terra, o ar e a água, agridem a história imemorial e recente, social e econômica de Roraima. Para começar, permitiram que esse lixo chamado acácia mangium empesteasse os campos gerais do Lavrado com sua inutilidade plena, se bem que agora a estão usando em fornos de olarias, boa parte destas também ilegais, fixadas nas matas ciliares do Rio Branco. Muitos desses políticos, dizia eu, queriam, e chegaram mesmo a aprovar em lei que nós pagássemos a metade da conta de luz de uma tal de Brancocel, uma usina de celulose que jamais saiu do papel, papel este que seria produzido com essas mesmas acácias que agora morrem de fungos e de fogo quando agrupadas no Lavrado, mas que se disseminam aleatoriamente e sem controle em várias áreas, principalmente nas margens de estradas e igarapés.

São praticamente esses mesmos políticos e tecnocratas que bancam atualmente a instalação de uma usina de produção de etanol que seria localizada justamente na base da formação do Rio Branco, ao lado da sede da antiga fazenda São Marcos, hoje terra indígena, no encontro do Uraricoera e o Itacutu. O EIA-RIMA desse empreendimento, que eu já tive a oportunidade de estudar, é um poço de mentiras e imprecisões, mesmo assim, com apoio governamental estadual a fedentina promete acontecer. Isto por que a chaminé da fábrica, segundo o próprio EIA-RIMA, lançará fumaça que poderá chegar até Boa Vista, atingindo principalmente os bairros de Aparecida, Bairro dos Estados, Caçari e Paraviana. Sem falar no perigo de contaminação da água por vinhoto. E por aí vai.

A sanha das empreiteiras e seus comensais se traduz no que seria a derradeira e definitiva ameaça à vida saudável nas terras do vale do Rio Branco, refiro-me à declarada intenção de criar um coágulo permanente no meio da artéria, a tal hidrelétrica do Bem-Querer. Tal obstáculo no meio do caminho, do fluxo da vida, impedirá a migração dos peixes, alagará imensas áreas de florestas e lavrados, alterará o clima. E tudo isso para quê? Para que meia dúzia de pessoas ganhe dinheiro.

Por acaso há escassez de energia em Roraima? E os contratos milionários com a Venezuela e com empresas brasileiras que têm parques termoelétricos aqui? O que é feito com a nossa energia? Por que pagamos um valor tão alto por uma energia que nos chega do exterior a um preço tão barato? Se o regime de chuvas de Roraima é o mesmo que abastece a represa de Guri, na Venezuela, para que serviria criar uma hidrelétrica que pode padecer dos mesmos problemas climáticos? Por que não exploram todo o potencial da hidrelétrica de Jatapu? Por que não insistir na ligação com o sistema Tucuruí, este sim, pertencente a uma outra região climática. E a energia solar, eólica, de biomassa, todas as fontes tão abundantes por aqui, por que não investir nisso? E podemos ventilar muito mais argumentos para provar o péssimo custo/benefício que a hidrelétrica de Bem-Querer traria, e que também apontam que por trás dos argumentos desenvolvimentistas está o desejo de alguns em se apropriar de recursos públicos destruindo o patrimônio natural que deve servir ao povo.

Roraima não se desenvolve não é por falta de energia, é por falta de vergonha na cara de muitos dirigentes e por causa da impunidade que enche a Penitenciária Agrícola de pobres, enquanto os ladrões do dinheiro público desfilam pelas ruas sempre defendendo o “desenvolvimento”.

Desenvolvimento de quem?

Como disse um amigo: “só quer a hidrelétrica do Bem-Querer quem tem ‘mal-querer’”.

* Defensor Público

Manifesto Puraké

O Movimento Puraké visa favorecer e incentivar a participação e atuação da sociedade no debate sobre o futuro ambiental, social e econômico de Roraima. Esse é o blog de nosso movimento, que em seu primeiro post divulga o manifesto de fundação do movimento Puraké!

Manifesto do Movimento

Boa Vista, Roraima, 29 de junho de 2012

O Movimento Puraké tem como objetivo favorecer a participação da sociedade no debate sobre o futuro de Roraima, através da divulgação de informações e da abertura de espaços para o diálogo, em busca de um futuro com justiça social, ambiental e econômica.

O Movimento Puraké considera que o crescimento econômico não pode ser alcançado a qualquer preço, que os recursos naturais são finitos e também pertencem aqueles que ainda estão por nascer, e que a geração de riqueza só faz sentido se for acompanhada de sua melhor distribuição.O Movimento Puraké levanta bandeira em defesa do rio Branco, o maior patrimônio natural do povo de Roraima, artéria que drena quase toda a superfície do Estado, lembrando que a saúde deste rio, de seus afluentes e suas nascentes, é indispensável para o futuro de todo o seu povo, rural, urbano e indígena, e que suas águas e margens devem ser protegidas de toda a forma de agressão.O Movimento Puraké reconhece que o Rio Branco é historicamente utilizado por pescadores e extrativistas, de forma sustentável, e que eles devem ter sua atividade econômica e seu modo de vida respeitados.

O Movimento Puraké chama atenção para o potencial turístico das praias do Rio Branco, um potencial ainda pouco explorado e que pode se tornar um nova alternativa de desenvolvimento.

O Movimento Puraké defende que a tomada de decisão sobre a construção de grandes obras em Roraima, deve ser uma responsabilidade compartilhada com toda a sociedade, através de um processo verdadeiramente participativo e bem informado, que favoreça a participação de todos os segmentos e reconheça o papel do conhecimento científico e tradicional.

O Movimento Puraké, finalmente, faz questão de lembrar que a contribuição do rio Branco para o rio Negro e o rio Amazonas, levando em conta o volume e a qualidade da água, a riqueza e a quantidade de peixes, é um valioso serviço ambiental que Roraima presta para o Brasil, e que ainda precisa ser reconhecido, divulgado e valorizado.